quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Eu, Tu, Ele, Nós, Vós, Eles.

Era uma bela tarde primaveril e eu estava atrasada. Andava apressada pelas ruas da cidade, tentando recuperar o tempo perdido. Procurava desviar das pessoas que atravancavam o caminho. Ia pensando nas contas que tinha que pagar e nas coisas que eu ainda não comprara. Fui direto pela rua, sem olhar para os lados. Então ouvi a buzina. Olhei para o lado e vi os faróis vindo em minha direção.
Eu te vi atravessando a rua sem pensar. Apertei os freios e a buzina ao mesmo tempo, mas já era tarde demais. Tu apenas olhastes em minha direção antes que o carro te atingisse. Dobrastes teu corpo e batestes a cabeça em meu pára-brisa, antes que caísses no chão. As rodas do carro ainda passaram por cima de ti antes que eu conseguisse pará-lo.
Quando ele ouviu o barulho, apenas a viu debaixo do carro. Ela não se movia e estava em uma posição estranha, antinatural. Mas ainda respirava. O dono do carro saiu dele desesperado, já ligando para a emergência. Ela sangrava pela boca e nariz, mas por fora não parecia ter se machucado muito. Os maiores danos deveriam ser internos. O barulho da ambulância já podia ser ouvido.
Quando chegamos ao local, uma pequena multidão já se formava ao redor do lugar do acidente. Foi até difícil para passarmos pelas pessoas. Conseguimos retirar a moça com relativa facilidade de baixo do carro. Ela, levando em conta a gravidade do acidente, poderia estar bem pior. Levamo-la para a ambulância e corremos como sempre, em direção ao hospital. Chegando lá, ela foi direto para a sala de cirurgia.
Vós contastes que ela estava sendo operada. Ela quebrara algumas costelas, uma perna e tivera uma perfuração em um pulmão, mas vós dissestes que estáveis fazendo o máximo para que nossa filha ficasse bem. Ela já estava estável, mas vós ainda estáveis preocupados, pois ela tinha perdido muito sangue. Depois, vós entrastes de novo no centro cirúrgico, deixando-nos a espera do fim da cirurgia.
Eles estavam sentados e confortando-se mutuamente quando o médico saiu da sala de cirurgia. Viram-no e podia-se ver que eles esperavam noticias de sua filha. Sorte a deles que dessa vez eram boas novas. Quando souberam que sua filha estava bem, as lágrimas correram de seus olhos. Eles foram abraçar o médico, embora ele não tivesse feito nada mais do que a obrigação dele. E assim essa história pôde ter um final feliz.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O Duelo

E então, os dois cavalheiros marcaram o inicio do duelo para o dia seguinte, ao pôr do sol, na arena central. A noticia já corria rápida pelos caminhos convencionais. Os cavalheiros foram para direções opostas, prepararem-se. A disputa de muito tempo finalmente se converteria em combate. Quem afinal ganharia o coração de Vitória?
Na hora marcada, a arena estava lotada de sentimentos, e todos discordavam sobre quem deveria ganhar. O juiz já se encontrava a postos quando os dois cavalheiros apareceram. Exatamente ao mesmo tempo e vindos de pontos opostos da arena. Um trajava branco dos pés a cabeça enquanto o outro vinha todo de negro.
Cada combatente escolheu sua arma e se dirigiu a um extremo da arena. Quando foi dado o sinal eles começaram a se aproximar cautelosamente, medindo os movimentos um do outro. O duelo começou sem grandes emoções. Os duelistas eram experientes e tinham um nível de habilidade muito semelhante.
O primeiro golpe veio para o cavalheiro de branco. Todos na arena vibraram. Uma onda de euforia atingiu Vitória. Ela sentia vontade de gritar até os pulmões estourarem. De sair pulando pelas ruas. De não parar de se mover um segundo. O cavalheiro de branco agradeceu as urras da multidão.
O cavalheiro de negro não perdeu tempo e, aproveitando a distração do outro, deu seu primeiro golpe. Um silêncio mortal passou a reinar na arena. Vitoria foi assolada por uma depressão sem igual. Sua vontade era de não fazer absolutamente nada. De deitar em uma cama e apenas ficar lá, sem pensar. O cavalheiro de negro não se desligou do combate.
O duelo continuou sem vencedores. O cavalheiro de branco sempre ágil e destemido, pronto para se jogar a luta. O cavalheiro de negro quase não se movia, mas seus golpes eram duros e precisos. O duelo nunca terminava. Não tinha um vencedor. Às vezes, os golpes vinham mais rápidos, outras mais espaçados. E a cada golpe uma onda de euforia ou depressão atingia Vitória.
O duelo continuou por dias, meses. Sempre alternando euforia e depressão. Por fim, não teve jeito. Vitória foi ao psiquiatra. Foi diagnosticada com transtorno bipolar.

domingo, 10 de outubro de 2010

O Mergulho do Cisne

Eu olhei para a água a muitos metros abaixo de mim. Ela estava serena e refletia a luz do sol. Pensava que toda a minha vida culminava nesse ponto, nesse salto. E agora não sabia se teria coragem de saltar. Se eu iria acabar logo com isso. Tudo girava ao meu redor. Eu ouvia apenas a minha respiração entrecortada e as batidas descontroladas do meu coração. Fechei os olhos e saltei.
Desde criança, eu fora uma menina prodígio. Nas minhas primeiras aulas já me destacava dos meus colegas de turma. Fui a primeira da turma a aprender a ler e a escrever. Nos primeiros anos do ensino fundamental, só tirava a nota máxima. Eu impressionava tanto os meus pais quanto os professores.
Mas foi quando comecei a treinar que me descobri. Com dez anos, eu era a melhor da equipe e começava as minhas primeiras competições. Sempre levava para casa alguma medalha. Sentia a inveja nos olhos das outras crianças e o despeito nos olhos das outras mães. Eu era o centro das atenções. E estava deslumbrada.
Este deslumbramento foi a minha perdição. Passei a cada vez mais querer chamar a atenção. Fosse nos treinos, fosse na escola. Esforçava-me além do necessário e até além do possível para conseguir as melhores notas, independente de onde fosse. E quando não conseguia o primeiro lugar, mesmo que por pouco, eu me sentia completamente desconsolada. Porque sabia que eu era a melhor.
Passei a me afastar dos meus verdadeiros amigos, os que tentavam me tirar do redemoinho de vaidade em que estava me afogando. Cerquei-me de bajuladores, que apenas me elogiavam sem me apoiar realmente, muito menos me ajudar. A minha família tentava ao mesmo tempo me felicitar por minhas conquistas e botar juízo na minha cabeça. Falhava nas duas tentativas.
Com o tempo, fui percebendo que estava solitária, perdida em meu orgulho. E em vez de tentar recuperar o que tinha antes, passei a me exigir cada vez mais, pois se impressionasse os outros o bastante, talvez não ficasse mais sozinha. Propunha-me metas cada vez mais absurdas, ia desrespeitando todos os limites da sanidade. Pressionava-me para ser perfeita em tudo, e nem sempre conseguia. Essa pressão me trouxe a este momento.
A água se aproximava rapidamente de mim. Parei de pensar. Apenas me movimentava delicadamente, como havia feito tantas vezes antes no treino. Não errei um detalhe sequer. Atingi a água com o mínimo de impacto possível. Ao voltar a superfície eu ouvi os aplausos. E quando a nota saiu, sabia que tinha vencido. Que tinha conseguido. Eu tinha sido perfeita.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Mudança

Era uma manhã normal. Eu tinha tomado um banho, o café da manhã e estava sentado vendo televisão. O dia estava sem graça, nem frio, nem calor, o céu nublado, perfeito para se ficar em casa. Na rua, poucos carros e um ou outro ônibus passavam quebrando o silencio. Foi quando os homens sem rosto chegaram.
Começaram por avaliar cada lembrança, cada pedaço de recordação que eu tinha. Mediam, pesavam, quantificavam, sem nenhuma consideração com o significado que elas tinham para mim. E eu não podia fazer nada contra eles, apenas ficar observando eles estuprarem a minha intimidade.
Logo em seguida, eles começaram a embalar a minha vida. Pegavam os melhores anos da minha infância, as maiores besteiras da juventude, as mais importantes conquistas da maturidade e as enrolaram em plástico-bolha, papelão e fita adesiva. E ordenadamente botaram em caixas, cada uma com sua respectiva identificação.
E então começaram a levar as partes do meu eu. Pegavam, botavam no ombro e, sem nenhuma consideração, levavam para algum lugar que eu não sabia onde. Com toda a calma e ordem possível, eles levaram tudo o que era eu. Não deixaram nada, apenas uma casca vazia.
E por fim, me embalaram, me encaixotaram, e me levaram para longe.

Ausencia

No dia seguinte, Marcos acordou de supetão. Levantou pensando no que acontecera. Estava meio desorientado, procurando achar algum motivo para o seu comportamento do dia anterior. Não achou. Não tomou café, preferiu tomar achocolatado. Como o trabalho só começava à tarde, passou toda a manhã na cama vendo TV e pensando se não deveria tirar um dia de folga para relaxar.
Preferiu ir ao trabalho. Foi de ônibus, e durante todo percurso ficou prestando atenção em si mesmo, a procura de qualquer sinal de descontrole. Quando, depois de uma viagem tensa, chegou ao trabalho, tratou de ir logo para o seu posto de vigia da fábrica. Passou o resto do dia quieto, apenas falando o estritamente necessário. Quando foi a hora de voltar para casa, tomou um taxi.
Chegou sem nenhum problema. A casa estava um tanto quanto bagunçada. A louça acumulada, do café da manhã e do almoço, estava na mesa, a cama estava desarrumada e no banheiro parecia que tinha passado um furacão. Mas Marcos não estava com cabeça para arrumar nada. Foi para a cozinha preparar algo para comer, mas só tinha miojo na despensa. Comeu miojo mesmo e foi se deitar. Ficou rolando na cama um bom tempo antes de conseguir dormir.
Quando acordou, ainda era cedo. Levantou e foi para a cozinha. Assim que entrou se lembrou que não tinha comida em casa. Tinha que ir ao supermercado. Trocou de roupa e foi. Era a primeira vez que andava a pé depois do ocorrido. Ele estava receoso de acontecer novamente, mas ele não tinha outras opções. O caminho foi tranqüilo. Ele comprou o que precisava para o dia e voltou rapidamente. Depois de tomado o café, passou o resto da manhã arrumando a casa.
O caminho para o trabalho foi o mais perto do normal possível. Não houve nenhum imprevisto e até o trânsito ajudou. Ao chegar, Marcos cumprimentou os amigos e foi para o posto. Estava com um humor melhor e falou com todos que falaram com ele. Ele relaxou e voltou para o velho hábito de tentar descobrir a vida das pessoas. Um estava de mau humor, com a camisa toda amarrotada, tinha brigado com a mulher. O outro estava com uma camisa nova e sorrindo a toa, tinha ganhado um aumento.
Na hora de ir para casa, a dúvida que o tinha perseguido durante todo o dia voltou com toda a força. Ele gastava uma fortuna para ir para casa relativamente tranqüilo ou ia a pé e corria o risco de ter outro ataque? Ônibus a essa hora não tinha mais. Ele foi enrolando a saída para ter tempo de pensar, mas mesmo assim quando ele saiu ainda não tinha certeza se tinha escolhido certo.
Ele foi passando por lugares conhecidos se controlando ao máximo. A rua estava deserta, mas dessa vez ele tinha certeza disso. Conforme as areias do tempo escorriam, Marcos ia ficando cada vez mais tranqüilo. Ao chegar em casa, ele arrumou o pouco que tinha que arrumar, comeu o que sobrara do almoço e foi se deitar. Pouco antes de dormir, percebeu que finalmente estava sozinho.